Echo, echo, echo(...)

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Quando o Conceito de Bem-estar é Enganar


Fui caminhando entediada pelas ruas do centro da cidade. O calor era insuportável e meu carro, que eu tinha comprado há apenas cinco meses, tinha sido roubado. Saco. Precisava pagar umas contas, fazer umas compras para o jantar, ir à manicure(...) e tudo à pé. Agilidade, cansaço, tédio, masmorra e guilhotina.
O amante com certeza estava me esperando em sua casa já com algo pronto para comermos. Ele cozinhava muito bem – habilidade que havia conquistado trabalhando numa cozinha enquanto morou na gringolândia.
Samir era espirituoso e engraçado, mas mais que isso: ele era um folgado: esperava que EU ligasse, que EU perguntasse se estava tudo bem. - Ao menos ele lavava a louça e era organizado, quando me mudei da casa de minha mãe eu já sabia disso.
Samir e eu já estávamos juntos há dois anos, sete meses e quinze dias. Nem sei como isso aconteceu. E por não saber, havia acreditado na história dele de que eramos amigos de um arraiá qualquer, embora não fizesse o menor sentido para mim, era a única coisa que me vinha na cabeça quando questionada sobre o início do romance. Então era essa a resposta que eu dava: “Sim, ele é um amigo que conheci num arraiá sei lá quando e levei para casa.” Inconsequente, afogueada, débil.
Minha mãe me perguntou se eu não poderia namora-lo ao invés de me mudar para morar junto. Respondi que não, e mesmo sem entender ainda hoje o porquê de eu haver me mudado num espaço de tempo tão curto – seis meses – fui de mala e cuia morar no flat dele.
O cara era um veterano do rock e era trilíngue: falava inglês, francês, português (que também chamo de brasiliês), vivia de pensão, era louco, não tocava, nem escrevia, seus gestos eram duros e às vezes gritava quando falava. Nesse sentido, o que quer que eu pudesse dizer em seu favor seria invenção minha para tentar suavizar o fato de ele ser um completo junkie. Eu dizia “Samir, meu bem, vamos tentar produzir algo bacana, pôxa, você é um cara tão inteligente. Tenho certeza que deve poder fazer algo legal, ou pelo menos tentar.”
  • Claro. Por que não? Amanhã vemos isso.
Então eu olhava impaciente para ele e me sentia forte, correta, inacessível, uma mulher fantástica convivendo com um homem franco, porém incapaz de gestos sensíveis, mas que podia me sustentar apesar de tudo. - às vezes eu me questionava se isso seria suficiente. Será que era apenas isso que eu merecia? Você sabe a resposta, leitor? Eu sei a resposta: eu mereço o que estiver disposta a merecer. Sei disso tanto quanto sei quem sou. Fortaleza, muro branco, decisão (ou a falta dela) e comportamento lascivo.
Uma vez, quando ainda não morávamos juntos, o pai dele havia emprestado o próprio carro, que não era lá essas coisas, mas servia para não se andar à pé. Samir poderia me pegar em casa e devolver o carro depois de uma hora, uma hora e meia. O que é que ele faz após me buscar? Pára no primeiro bar que vê e se faz de doido. Eu disse: “cara, e se seu pai precisar do carro?” no que ele diz: “Empresta seu celular para ligar para ele então.” Samir nem celular tinha, ai de mim. Eu disse: “Pega, liga logo.” Ele ligou, falou com o pai, e depois que desligou olhou com uma cara de demoninho que só ele tem, e disse que antes de sair da casa do pai ele tinha pego as chaves do carro da irmã e colocado no bolso. Perguntei o por quê, ele disse “adivinha”(...) a irmã dele tinha acabado de fazer uma viagem para a França e deixou o carro no estacionamento do condomínio onde morava e as chaves do carro com o pai deles.
  • Nós vamos lá no condomínio da minha irmã, eu falo com o porteiro, pegamos o carro dela, você vai levando esse carro do meu pai e eu levo o outro, deixamos a Parati num lugar estratégico para que meu pai não veja, devolvemos o carro dele e vamos curtir na Parati da minha irmã!
  • Samir, você definitivamente não bate bem da cabeça! Tá vendo que eu não vou fazer isso com seu pai! E se sua mãe descobre? Não. Eu gosto muito dela e ela me odiaria se descobrisse.
  • Porra, Gabi! Você desse jeito cai no meu conceito! O que é que custa sair um pouco? Vamos, vai dar tudo certo.
Eu retruquei, retruquei, mas após vinte minutos e duas cervejas acompanhadas de um “migué” daqueles eu o estava seguindo no carro do pai enquanto ele guiava o da irmã ruas à fora.
Fomos à casa do pai dele, entregamos o carro e batemos em retirada até onde tínhamos estacionado a Parati para completar o restante da missão. Samir olhou para mim e disse “onde estão as chaves do carro?” eu disse “que chaves?” Ele ficou branco. “Gabi, eu dei as chaves do carro nas suas mãos. Onde é que elas estão?” Aí eu lembrei: as chaves da Parati estavam dentro do carro do pai dele, puta merda! Que situação. Samir começou a dizer que eu era a rainha do vacilo e ainda fez uma dancinha ridícula dizendo que era a dança de premiação do “nobel do vacilo”. Eu sem graça concordei. - Fazer o quê, não é? Tinha vacilado mesmo. Vacilado feio.
Voltamos para a casa da família dele e só para aumentar o nosso drama a mãe de Samir disse que o pai dele havia acabado de sair. “Fodeu! O coroa vai ver as chaves do carro da minha irmã e vai se ligar na minha estratégia.” Esperamos com um sorriso nervoso nos lábios. Samir me encheu o saco. Eu fiquei totalmente envergonhada. Compramos mais umas cervejas no boteco da esquina. Eu disse que ele tivesse calma, pois as coisas ainda poderiam dar certo. E deram: o pai dele, que tinha apenas ido dar uma caminhada na praia voltou, e, melhor ainda, não tinha notado as chaves da Parati bem em cima do banco do carona do próprio carro.
Passeamos muito, devolvemos o carro da irmã intacto ao condomínio, voltamos à pé para casa e ninguém nos pegou. Frio na barriga, corda bamba, suor, suor na testa latejando, sorte e sorte por tudo que fôr.
No dia seguinte Samir quis repetir a mesma operação. Dessa vez eu sequer contestei. Mas aí foi a vez DELE pisar na bola: imaginem vocês que dessa vez foi Samir quem deixou as chaves da Parati dentro do carro do pai dele. Ah, eu não me aguentei: fiz a mesma dancinha ridícula de repasse do “nobel do vacilo” para ele. Dessa vez não teríamos como fugir: seríamos pegos, com certeza. Ele disse que o pai dele sabia dar esporro como ninguém e que se ele fosse mais novo ou mais franzino com certeza levaria uma surra.
Eu disse “tenha calma que ainda há uma possibilidade de ele não ver as chaves. Já não tinha acontecido uma vez?” e Samir foi me deixar no ponto do ônibus. Eu morrendo de rir, ele, coitado, cabisbaixo. Aí começou a me dar pena dele, querendo ou não, ele já era um cara muito legal para mim. Deveria ficar com ele até que o coroa chegasse? Bom, eu tinha de ir para casa, por mais que a situação pedisse que eu ficasse. Ele disse “amanhã a gente se vê” eu disse “será?” Ventania, altura, ascensão, sensação de queda, espera e mais espera.
Cheguei em casa e fui ler um livro. Nem consegui me concentrar. Será que o amante iria se ferrar muito? Liguei a televisão. Interessei-me por um filme francês na tv a cabo.
Quando eu já estava quase dormindo meu celular tocou. Era o número da casa dos pais de Samir. Eu pensei “ coitado já está me ligando. Deve ter levado uma lição de moral daquelas.”
  • Oi, Samir.
  • Oi, Gabi. Se arruma que eu estou passando aí para te pegar para sair. Meu pai não viu as chaves do carro da minha irmã de novo, você acredita?
Então é isso. Dizem que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar. E eu digo que não é bom confiar nesse ditado, não.

3 comentários:

  1. Errar a gente erra sempre, querida. Precisamos aprender a nos perdoar.

    Estou publicando uma coletânea de poemas antigos, surgidos do fundo do baú, venha lê-los. Espero que goste. Deixe sua opinião! Obrigada! bjos

    E vamos confiar na vida! ;)

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  2. E quem conta um conto aumenta um ponto.
    Deixa comigo que vou dar uma passada em seu recanto.
    A vida é doce.

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  3. A Gabriela e o Samir são parte de uma coletânea que venho fazendo desde o ano passado ao qual eu entitulei "O Homem Feio". A primeira história está publicada originalmente em: http://beatbrasilis.wordpress.com/revista-beatbrasilis/
    Espero que goste da leitura.

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