Echo, echo, echo(...)

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

O Homem Feio - texto 1


Olhei minha figura em frente ao espelho, depois espiei o amante roncando como um urso esparramado na cama. Passei as mãos nos cabelos e mirei a garrafa de conhaque de péssima qualidade na qual existia ainda dedo e meio da bebida. - Foi com temor que, recordando os fatos, nos vi, noite passada, entregando nossas almas, milímetro a milímetro, aos confortos da vida patética, tudo isso enquanto ele me enlaçava pela cintura e me dizia coisas sujas ao pé do ouvido.
Minha pele era suor e meu semblante aquela expressão que vemos no rosto de quem passou a noite embriagado rindo de tudo e de todos. Eu lembrava de absolutamente tudo.
“Puta merda, que foi que eu fiz?” Vazio, culpa, imprudência, negligência, falta de cuidado.
Senti um formigamento se espalhando pelo corpo. Fui tomar banho.
Esperei ainda quarenta minutos para o urso voltar do coma alcoólico, com um suspiro longo e o olhar estúpido, provavelmente se perguntando “onde é que eu estou?” Embriaguez pós ordenada, sonolência, dependência, submissão tardia, consciência do ser.
Eu disse: “E aí?” mas eu só queria dizer que estava ali por inconveniente acaso. Também quis dizer que ele havia sido uma bosta na cama e que eu não tinha sequer gozado. - Enquanto ele me despia devagar eu nem ao menos cogitei desencorajá-lo: tropecei para os limites da cama e covardemente deixei que ele caísse por cima: ele me deu uma lambida no rosto e pôs dois dedos dentro de mim. Fiquei só no pensamento, empunhando palavras imaginárias que machucam, apenas por hábito. Por quê? Porque de outra forma não seria eu mesma, nem poderia viver coisas como as que vivi e vivo. Desabamento, firmamento, período, folhagem no jardim, céu clareando, sossego e sossego excessivo, sossego de ruína e minha própria voz sufocando de longe o que sinto.
Quis perguntar coisas. Contentei-me com um: “dormiu bem?” Não sei porque perguntei isso – certamente a imaginação é mais profunda que a realidade.
Meu problema com a paciência ultrapassou o sinal vermelho com força quando ele demonstrou clara falta de interesse em me dar prazer. Eu o empurrei com o braço esquerdo: “não tenho tempo para pessoas entediantes.”
Espero de coração que ao encontrar esse amante de novo eu consiga, com a prática que tenho, sanar esse mal entendido com essa casualidade e minha falta de resignação. Entre mortos e feridos estou eu afinal.
Ergui-me e vesti a roupa.
Sentei-me no sofá da sala e tomei a liberdade de ligar a televisão na esperança de saber que time havia ganhado o jogo. De repente ele apareceu já todo alinhado com seu all star vintage nos pés. “Vou embora.” disse quando minha mãe chegou com o almoço e olhou para ele: “Você é namorado de qual de minhas filhas?” Ele olhou para a tela do celular, como se procurasse a resposta, depois falou sem sorrir: “Namorado? Não. Eu sou um amigo do arraiá da semana passada.” Eu me danei a gargalhar: “Como é que é: Um amigo do arraiá?! Que resposta moderna, hein, palhaço! Qual seria o próximo passo? Pedir o que eu não posso?”
Ele aceitou almoçar, não tinha o mínimo brio. Mas eu sou uma garota surpreendente, feita de teflon: pode jogar lixo em mim a semana inteira que não vai grudar.
Eu revirei meus olhos quando nos sentamos lado a lado na mesa. E ele lá com o celular na mão aparentemente sem perturbação alguma. Revirei os olhos mais uma vez, como quem revira faca na ferida já em processo de cicatrização.
Eu não quis permanecer cega no escuro, na aceitação, como se fosse uma ovelha cujo pastor seduz com chicote. Não poderia afrouxar meu pensamento modelar e me quebrar caindo num abismo de futilidades, então eu me concentrei em resistir quando a situação se complicava, e só.
Durante a refeição: minha mãe e suas perguntas, o amante e sua postura incomum.
A ladainha que estava presente durante o almoço os transformava em ralé, colhendo trocados de desprezo. Ah, como eu gostaria que um raio de fogo e mel varado de luz atingisse a mesa e os transformasse – já que o fogo a tudo transforma – em criaturas ideais e encantadoras. Seria perfeito, divino, magnifico. E seria bom que fosse logo, antes que o amanhã deixasse de ser pleno e belo tornando-se fúria na forma mais hostil.
Não pude evitar a constatação de saber que nossa loucura estava perigosamente desfazendo nosso mundo em ruínas. - Tínhamos de nos tocar! - Nem pude evitar o pensamento com as palavras de Nietzsche boiando em minha cabecinha de vento e terra. Em certo momento, entre uma garfada e outra, declarei-as: “É uma barbaridade amar uma única pessoa, pois é algo que se faz contra as outras.” Talvez esse pensamento reafirme a premissa bíblica de um dos 10 mandamentos que diz: “Amai-vos uns aos outros assim como eu vos amei.”
Mas por que é tão complicado o amor mais sublime que o amor com interesse sexual? Por que dizer eu te amo não pode ser apenas por afinidade, sem cama? Por que não se pode apenas ser amigos? Por que não posso amar em paz e demonstrar esse afeto natural e espontaneamente, já que eu amava muitos e de diversas maneiras? Por um motivo deveras simples: porque tudo que o ser humano faz, ele faz com a intenção de dominar o outro.
Certo, certo. Sei que essa dificuldade esplanada agora, seria também minha própria dificuldade já que eu havia dormido com um, aparentemente, “amigo do arraiá da semana passada.” - sempre caindo no mesmo erro, sempre sendo seduzida pelo sabor de aventura que a vida oferece – mesmo algo do cotidiano, pois sabia que nada precisa ser fantástico para ser bonito, o simples também pode ser belo. Tive a impressão de que, além de estar falando sozinha, eu estava pensando sozinha.
Olhei para o meu amigo tentando evitar o revirar de olhos que insistia em se tornar habitual. Daria 1 real se ele se mantivesse gentil; 2 reais pela tentativa de se manter gentil; se nada acontecesse daria um pontapé em seu traseiro(...)
O amante terminou de comer, ensaiou levar o prato para lavar, eu disse “deixe aí(...)” e ele, claro, deixou. Depois, num rompante de sobriedade, levantou-se e lavou, não só o prato onde havia comido, como também toda a louça que estava suja na pia e na mesa – e isso me fez perceber que são formas variantes, na verdade, que estimulam a alma emotiva do ser humano, que permitem que ele esteja bem, mesmo um estúpido como havia sido, horas antes, esse amante, - e só quem não tem sensibilidade se atrapalha com elas – elas são grandes oportunidades de vivência, e de aquisição de sabedoria até para quem não as procura. – Eu havia acabado de perder 1 real.
O fato é que “o amigo do arraiá” agora lavava a louça do almoço na casa onde eu morava.
Não é uma maravilha quando a caminhada nos força a se enquadrar? – Como num teste de sobrevivência. Eu já havia visto muita gente nessa situação: meu “amigo” era um charlatão fértil.
Minha mãe pediu licença e foi para seu quarto descansar um pouco do almoço. O amante passou o resto da tarde comigo. Idiota.
Ele agia como se fosse seu último dia na casa de uma tia que visitava: com cordialidade. Eu quis fingir desprezo, então na hora do fingimento eu falhei, por isso eu chorei: por me importar demais.
O efeito da bebida havia passado fazia horas e eu que desejava paz indescritível, repouso, êxtase, eu que era a menina que resistia quando tudo se complicava, consegui ser a tia de um amante que era um suposto amigo que eu havia conhecido num arraiá qualquer da semana passada.

- Narayana Ribeiro.

Obs.: texto publicado originalmente em: http://beatbrasil.blogspot.com

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