Echo, echo, echo(...)

quarta-feira, 17 de março de 2010

Conto.


Uma mão segurando um canudo. Meus pensamentos tímidos tropeçaram na malícia que me invadiu ao vê-la ali, sentada, dedo no canudo que sugava o drink, sorrindo para mim um sorriso inimaginável... Recriminei-me por olhá-la: sabia que meu pescoço, esse órgão flexível dado por Deus e aperfeiçoado pelos pensamentos enviados pelos diabos não iria ficar parado. Seus cabelos e seus olhos pareciam pouco a pouco travestirem-se de górgonas verossímeis que petrificariam meus movimentos a qualquer hora que eu olhasse para ela. Ainda assim, olhei. Ela parecia desenhar no caminho da brisa que soprava entre nós uma trilha que ligasse pensamentos e malícias: uma torrente de sensações percorreu desde minha espinha até as hastes dos meus óculos. O inusitado vestia-se com uma bruma imperceptível de brisas e desejo. Perguntava a mim mesmo o que teria iniciado aquela estranha interação.
Estranho foi passar por aquela Santa Inquisição, de labaredas mais prazerosas. Mas, ao contrário do que pensava o lado sazonal dessa malícia improvável que me tomara, o calor do meu corpo com o olhar curioso dela. E ela se foi, sorrateira, olhando para trás, como se me desprezasse.
Cheguei em casa e me deparei com esse desafio na minha caixa de mensagens:
Tome essas linhas como uma oferta, moço bonito. Sinto o calor que vem de você me arrepiando as linhas do rosto.
Aquilo não era a noite, meu bem: era vontade de te ter.
Foi quando eu te vi com aqueles óculos de grau e pensei: meu Deus, que homem lindo! Um intelectual com certeza! E senti ondas arrebentando nas pedras às dez da noite e senti o dia raiar dentro de mim e através de você. E quando me aproximei ainda tive essa impressão – você em sua timidez me passou à perna. Mas indiferente aos avisos que possa ter recebido, preferi acreditar na falsa impressão e ser feliz em meu engano. Às vezes eu me sinto uma figura fantástica, recolhendo rosas vermelhas de um buquê que acabo de ganhar.
Só penso em você quando te vejo. Quando bate o vento eu sigo preparando a tempestade para você e para mim. - Vi você em todas as suas formas, inclusive as reais. - Notei quando se aproximava com mesuras e gracejos de rapazote no cio – atitude que conheci muito bem e aprendi cedo a odiar.
A vida não é uma ópera, querido: a vida é seu rock and roll e minha pimenta. Mas o que poderia querer mais, queridinho? Abandono você e você me ama:
você me tem com dificuldade.
Ter. Eu quero tê-la como se tem uma doçura ao final da noite. Como em uma contagem regressiva em que uma ladainha profana se multiplicando...
Tell me that you wanna hold me
Tell me that you wanna whore me
Tell me that you gotta show me
Tell me that you need to slowly
Tell me that you're burning for me
Tell me that you can't afford me
Time to tell your dirty story
Time turning over and over
Time turning four leaf clover
E ela, em meus sonhos, dançava lascivamente, molhando meus olhos com o produto da sua saliva, repleto de odores de beijos trocados, fechando decotes e zíperes com um grave sentido de esfinges, lançando o velho desafio, ao final da noite:
Decifra-me ou...
Fiquei olhando a peregrinação dela por meu recanto, o jeito maroto de ela limpar o canto da boca após brincadeiras selvagens, o riso magro que cortava o caminho entre nós dois. Parecia passeio no meio dos meus mais distantes devaneios. E como um devaneio eis que ela se foi, sorrateira, enquanto eu aguardava, tonto, no quarto.
Fui caminhar...
Não sei quantas noites peregrinei tentando resgatar as palavras que aqueles olhos enunciaram naquela hora em que minha timidez veio por terra. O pequeno riso dela que escorria pelo dedo que ela mordia, sapeca, vinha à minha alma como um pequeno canto de pardal: e ainda assim, cruel.
Eis uma pista, deixava na caixa de mensagens:
(...)* você me tem com dificuldade. Como uma ária que desfila em meus ouvidos, como um reflexo meu em teus óculos. As rosas vermelhas da minha fantasia parecem impregnadas de tua realidade e real me sinto longe de ti, buscando o inusitado de nossas horas juntos. Tua beleza me sufoca como o teu corpo sobre mim na hora de um gozo inimaginável, um beijo no pescoço ou uma mordida no lóbulo de minha orelha... Eu te tenho com dificuldade.
Procura-me. Tenha-me. Decifra-me.
Devora-me.
Saí à rua acossado pela voz que emanava daquela mensagem. E, transpassando o primeiro degrau para a calçada ela segurou meu braço, docemente.
Que seja hoje. Para sempre. Do inusitado encontro, a certeza da paixão.
Partimos. Mãos dadas com o destino. O abismo a nossa frente nos puxava com a maciez de três línguas. Ela encostou a cabeça em meu peito e suspirou. Suportei que ela pegasse o que quisesse de mim por instantes eternos, e permiti que duas lágrimas longas e sentidas escorressem em fio por seu rosto.
A dificuldade era sempre a mesma: desatar os nós que nos uniam.
Nós nos tínhamos com dificuldade.
Nós nos causamos bem estar.
Nós nos causamos mal estar.
Temos raiva um do outro
Amamos-nos um ao outro.
Não queremos filhos
Ela não quer
Eu não quero
Então eu acaricio o ventre inchado e a empurro de leve para o abismo.
Ela segura minhas mãos: quer que eu vá com ela.
Digo que não estou preparado.
Estudo uma maneira de fazer com que entenda. Eu a encaro olhando nos olhos e o reconhecimento aparece. Então ela gira o corpo, como adorável bailarina, e troca de lugar comigo me oferecendo ao abismo.



- Narayana Ribeiro & Alisson da Hora.

Obs.: Na imagem, Rodin.

3 comentários:

  1. Ficou lindo!Obviamente que se não fosse o texto da escritora Narayana, a minha parte do conto não teria sido possível. Nem as imagens, nem as evocações de sensações das mais diversas... Obrigado pela parceria, que outras venham!

    beijo, escritora!

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  2. Marquês, você por aqui! Quanta honra!

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